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Lisboa de Antigamente | “O Calceteiro, Arte a Branco e Preto”


"Faz frio. Mas, depois duns dias de aguaceiros, 
Vibra uma imensa claridade crua. 
De cócoras, em linha, os calceteiros, 
Com lentidão, terrosos e grosseiros, 
Calçam de lado a lado a longa rua.

Como as elevações secaram do relento, 
E o descoberto sol abafa e cria! 
A frialdade exige o movimento; 
E as poças de água, como em chão vidrento, 
 Reflectem a molhada casaria.


Avenida da Liberdade [1907], De cócoras. em linha, os  calceteiros, Em segundo plano vê-se o Palacete Seixas
Photo: ©Lisboa de Antigamente


Em pé e perna, dando aos rins que a marcha agita, 
Disseminadas, gritam as peixeiras; 
Luzem, aquecem na manhã bonita, 
Uns barracões de gente pobrezita 
E uns quintalórios velhos com parreiras.

Não se ouvem aves; nem o choro duma nora! 
Tomam por outra parte os viandantes; 
E o ferro e a pedra — que união sonora! — 
Retinem alto pelo espaço fora, 
Com choques rijos, ásperos, cantantes.


Praça Dom João da Câmara [1907], Com lentidão, terrosos e grosseiros, Ao fundo, à esq., o "Café Suisso"
Photo: ©Lisboa de Antigamente


Bom tempo. E os rapagões, morosos, duros, baços, 
Cuja coluna nunca se endireita, 
Partem penedos; cruzam-se estilhaços. 
Pesam enormemente os grossos maços, 
Com que outros batem a calçada feita.
 
A sua barba agreste! A lã dos seus barretes! 
Que espessos forros! Numa das regueiras 
Acamam-se as japonas, os coletes; 
E eles descalçam com os picaretes, 
Que ferem lume sobre pederneiras.


Praça Dom João da Câmara [1907], Pesam enormemente os grossos maços Com que outros batem a calçada feita/
Ao fundo, à esq., o "Café Suisso, Rua 1.º de Dezembro e a Praça dos Restauradores

Photo: ©Lisboa de Antigamente


E nesse rude mês, que não consente as flores, 
Fundeiam, como esquadra em fria paz, 
As árvores despidas. Sóbrias cores! 
Mastros, enxárcias, vergas! Valadores 
Atiram terra com as largas pás.
 
Eu julgo-me no Norte, ao frio — o grande agente! — 
Carros de mão, que chiam carregados, 
Conduzem saibro, vagarosamente; 
Vê-se a cidade, mercantil, contente: 
Madeiras, águas, multidões, telhados!


Avenida da Liberdade [1907], Carros de mão, que chiam carregados,
Conduzem saibro, vagarosamente, Ao fundo vê-se a «cavalariça», do Palacete Sabrosa na esquina com a Av. Duque de Loulé

Photo: ©Lisboa de Antigamente


Negrejam os quintais, enxuga a alvenaria; 
Em arco, sem as nuvens flutuantes, 
O céu renova a tinta corredia; 
E os charcos brilham tanto, que eu diria 
Ter ante mim lagoas de brilhantes!

E engelhem, muito embora, os fracos, os tolhidos, 
Eu tudo encontro alegremente exacto. 
Lavo, refresco, limpo os meus sentidos. 
E tangem-me, excitados, sacudidos, 
O tacto, a vista, o ouvido, o gosto, o olfacto!  


Avenida da Liberdade [1907], Que vida tão custosa! Que diabo!/, Ao fundo vê-se o Palacete Sabrosa
Photo: ©Lisboa de Antigamente


Pede-me o corpo inteiro esforços na friagem 
De tão lavada e igual temperatura! 
Os ares, o caminho, a luz reagem; 
Cheira-me a fogo, a sílex, a ferragem; 
Sabe-me a campo, a lenha, a agricultura.

Mal encarado e negro, um pára enquanto eu passo; 
Dois assobiam, altas as marretas 
Possantes, grossas, temperadas de aço; 
E um gordo, o mestre, com um ar ralaço 
E manso, tira o nível das valetas.


Praça Dom João da Câmara [1907], E um gordo, o mestre, com um ar ralaço, E manso, tira o nível das valetas/
Ao fundo, a Rua 1.º de Dezembro, o "Café Suisso"  e o "Café Martinho"

Photo: ©Lisboa de Antigamente


Homens de carga! Assim as bestas vão curvadas! 
Que vida tão custosa! Que diabo! 
E os cavadores pousam as enxadas, 
E cospem nas calosas mãos gretadas, 
Para que não lhes escorregue o cabo.

Povo! No pano cru rasgado das camisas 
Uma bandeira penso que transluz! 
Com ela sofres, bebes, agonizas; 
Listrões de vinho lançam-lhe divisas, 
E os suspensórios traçam-lhe uma cruz!  


Praça do Marquês de Pombal [1933], E eles descalçam com os picaretes,, Que ferem lume sobre pederneiras
Ao fundo, o estaleiro do Monumento ao Marquês de Pombal e o antigo Palacete Lencastre (depois Clube Militar Naval

Photo: ©Lisboa de Antigamente


De escuro, bruscamente, ao cimo da barroca, 
Surge um perfil direito que se aguça; 
E ar matinal de quem saiu da toca, 
Uma figura fina, desemboca, 
Toda abafada num casaco à russa.

Donde ela vem! A actriz que tanto cumprimento 
E a quem, à noite na plateia, atraio 
Os olhos lisos como polimento! 
Com seu rostinho estreito, friorento, 
Caminha agora para o seu ensaio.


Rua Doutor Nicolau de Bettencourt [1957], E os rapagões, morosos, duros, baços, Cuja coluna nunca se endireita,
Partem penedos; cruzam-se estilhaços, Muro do Parque José Maria Eugénio, actual Fundação Gulbenkiam

Photo: ©Lisboa de Antigamente


E aos outros eu admiro os dorsos, os costados 
Como lajões. Os bons trabalhadores! 
Os filhos das lezírias, dos montados: 
Os das planícies, altos, aprumados; 
Os das montanhas, baixos, trepadores!

Mas fina de feições, o queixo hostil, distinto, 
Furtiva a tiritar em suas peles, 
Espanta-me a actrizita que hoje pinto, 
Neste Dezembro enérgico, sucinto, 
E nestes sítios suburbanos, reles! 


Avenida da Liberdade [entre 1906 e 1908], Os calceteiros usam moldes para marcar as zonas de diferentes cores,
repetindo esses motivos em sequência linear (frisos) ou nas duas dimensões do plano (padrões).
Charles Chusseau-Flaviens, /in GEH, Local da fotografia não  está identificado no arquivo

Photo: ©Lisboa de Antigamente


Como animais comuns, que uma picada esquente, 
Eles, bovinos, másculos, ossudos, 
Encaram-na sanguínea, brutamente: 
E ela vacila, hesita, impaciente 
Sobre as botinhas de tacões agudos.

Porém, desempenhando o seu papel na peça, 
Sem que inda o público a passagem abra, 
O demonico arrisca-se, atravessa 
Covas, entulhos, lamaçais, depressa, 
Com seus pezinhos rápidos, de cabra! "


 Lisboa, Inverno de 1878
Cesário Verde (1855-1886) in "Cristalizações"




Artigo retirado Lisboa de Antigamente 


Local: Lisboa, Portugal


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