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Calçada portuguesa | Da pedra fez-se mar

Começou timidamente a conquistar o seu lugar ao sol e é hoje uma das marcas da identidade única de Macau. A calçada portuguesa ganhou proporções inesperadas e faz parte do cartão postal da cidade


Calçada Portuguesa_01
 Texto Vanessa Amaro | Fotos Gonçalo Lobo Pinheiro

No início dos anos 1980, o arquitecto Francisco Caldeira Cabral chegava a Macau com a missão de, juntamente com a empresa Asia Consult, elaborar o novo Plano Director para a malha urbana da península. Macau experienciava o seu grande boom demográfico – passara de 169 mil habitantes em 1960 para 328 mil em 1983 –, novos aterros estavam em construção e era preciso rever infra-estruturas que acomodassem uma população crescente, não só de pessoas como também de automóveis. A ideia do arquitecto foi empurrar o trânsito para fora do que é hoje o Centro Histórico e criar ruas onde os pedestres fossem reis. E assim nascia o império da calçada portuguesa no Oriente.

O Plano Director ficou concluído em 1987, mas as ideias demoraram a sair do papel. “As autoridades concordavam com tudo, mas achavam que iriam criar um caos ao retirar o trânsito da zona do Leal Senado”, relembra Caldeira Cabral. A somar os receios da Administração Portuguesa de então, os comerciantes do largo central também torciam o nariz. Acreditavam que sem carros não haveria clientela e que sem clientela a Baixa de Macau ficaria às moscas. Caldeira Cabral continuava, no entanto, a acreditar nos encantos da calçada e em 1989 abraça as obras de remodelação do Hotel Bela Vista, numa parceria com o arquitecto Bruno Soares. “O chão do terraço era todo em cimento e eu pensei logo: ‘Já que não consigo meter calçada noutro sítio, vou fazer o teste aqui!’ E assim foi. Trouxe calceteiros de Portugal, mandei vir a pedra de lá e no dia da reabertura [em 1992] enchi-me de orgulho: toda a gente falou daquilo e perguntava porque é que eu não fazia mais calçada em Macau.”

A primeira pedra estava lançada e, em 1992, uma reunião com membros das Obras Públicas e do Leal Senado deu o impulso que faltava para alterar a imagem do principal largo da cidade. Entra então em cena o engenheiro António Saraiva, que com a luz verde para o encerramento da praça ao trânsito, bloqueia o acesso aos carros da noite para o dia. “A decisão foi tomada em conjunto com vários departamentos e nesse mesmo dia, de madrugada, fomos com um carro-grua pôr umas floreiras grandes e pesadas para impedir que os carros entrassem na zona. A partir de então, ficou claro que aquele seria um espaço apenas para peões”, conta Saraiva.




Mar de pedras

As ondas de pedras branca e preta começaram a nascer pelas mãos de 12 mestres calceteiros contratados em Portugal para executar o projecto e treinar a mão-de-obra local para mais avanços. Em 1993, o mar abriu definitivamente ao ‘trânsito’ de pedestres e todos os receios se dissiparam. “O Largo do Senado ganhou uma nova dinâmica e, ao contrário do que os comerciantes pensavam, mais e mais pessoas começaram a frequentar a zona, aumentando em muito o volume de negócios”, realça o arquitecto Francisco Vizeu Pinheiro, que mais tarde fez história ao expandir a calçada para as avenidas Almeida Ribeiro e Infante D. Henrique. “Hoje quem olha para o Largo do Senado acha que a calçada é uma coisa natural, que sempre ali esteve”, acrescenta António Saraiva.

Ainda antes da transferência de administração, em 1999, outros 15 pontos da cidade abriram alas para a calçada portuguesa. Os 12 calceteiros contratados em Portugal continuavam a arregaçar as mangas com a ajuda de ‘estagiários’ chineses e toda a zona dos novos aterros (NAPE e ZAPE) ganhou o pavimento ao estilo português.

O Instituto para os Assuntos Cívicos e Municipais (IACM), que gere e mantém os espaços públicos, ainda não conseguiu contabilizar quantos quilómetros de Macau estão cobertos com as pedras portuguesas. Elas estão por todos os lados: em becos e ruelas de Macau a Coloane [ver cronologia]. “É muita quilometragem de qualquer maneira”, diz Estefânia Inácio, arquitecta da Divisão de Reabilitação e Manutenção Urbana. Nos últimos 15 anos, a expansão continuou a ganhar força e no ano passado a Travessa dos Anjos, no centro da cidade, foi a última a embelezar-se com as pedras. Mas há mais a caminho. “Existem planos para criar novos roteiros turísticos na zona norte da península, por forma a desanuviar o centro. A calçada é um dos principais elementos dessa revitalização dos bairros”, acrescenta Estefânia.



Identidade única

“Assim que os visitantes que entram em Macau pelas Portas do Cerco põem os pés do lado de cá, sabem que estão num sítio completamente diferente do que já viram.” O arquitecto Francisco Caldeira Cabral, responsável também pelo projecto da calçada no posto fronteiriço, não tem dúvidas de que o pavimento serve também para realçar a identidade única de Macau como ponto de encontro pacífico entre as culturas portuguesa e chinesa. Maria Helena de Senna Fernandes, directora dos Serviços de Turismo, engrossa o coro e define a calçada como “um dos ícones de Macau”.

O turismo, especialmente desde a classificação do Centro Histórico como património mundial pela UNESCO, em 2005, tem sabido tirar vantagem desta particularidade. A calçada serve ela própria de guia turístico, serpenteando todo o património classificado, seja ele de origem portuguesa ou chinesa. Os mais de 29 milhões de visitantes registados em 2013 levam sempre o mar de pedras registado nas suas fotos onde quer que estejam, e até em Hong Kong e Zhuhai já se começou a utilizar a técnica de pavimentação. Um novo projecto na Ilha da Montanha, território da Província de Guangdong adjacente a Macau, também quer beneficiar de quilómetros de calçada na sua réplica do Terreiro do Paço de Lisboa.

No início deste ano, o próprio posto de informação turística do Terminal Marítimo de Macau ganhou calçada portuguesa. O sector de turismo na delegação da RAEM em Pequim também. “Em feiras de turismo e outras promoções que a Direcção dos Serviços de Turismo realiza mundo fora, a cidade tem sido inúmeras vezes divulgada usando calçada portuguesa e fachadas de monumentos históricos da cidade, para recriar o ambiente único da cidade e convidar os visitantes a ‘Sentir Macau’”, realça Maria Helena de Senna Fernandes.


Novos espaços de convívio

Muito para além do potencial turístico, a calçada portuguesa deu um novo significado aos espaços públicos de Macau. Hendrik Tieben, professor de arquitectura da Universidade Chinesa de Hong Kong, aponta que a criação dos largos tipicamente europeus pavimentados com pedras branca e preta, criaram verdadeiras “salas de estar ao ar livre para a vida quotidiana”. “Representações históricas e fotos mais recentes demonstram como esses espaços são usados para diversas actividades pelas diferentes comunidades que habitam Macau e também pelos turistas”, aponta no artigo académico ‘Urban image construction in Macau in the first decade after the handover’.

Francisco Vizeu Pinheiro, arquitecto e docente da Universidade de São José, frisa que a calçada devolveu aos residentes espaços que pouco a pouco tinham sido tomados pelos carros ou que estavam a ‘murchar’. O Largo da Sé, revitalizado em 2004, é exemplo disso. Antes das obras, a praça era sinónimo de parque de estacionamento. As lixeiras sempre lotadas e a ausência de qualquer infra-estrutura não convidavam ao convívio. Depois de ouvidos moradores e comerciantes, urgia uma intervenção que devolvesse o espaço à população. Acabou-se com os carros e o lixo passou a ser depositado em contentores sem estarem à vista.

“Foi uma grande obra de requalificação. Cortamos uma parte do trânsito, retiramos os estacionamentos e aumentámos a zona da praça, que foi toda pavimentada com calçada portuguesa. Também pusemos lá uma fonte, bancos, candeeiros ao estilo europeu e reconstruímos uma cruz que há muito estava danificada. Quem olha para o Largo da Sé hoje não consegue imaginar o que aquilo era antes”, aponta Vizeu Pinheiro, que assinou o projecto de requalificação.

Os largos, bem integrados na topografia e cuidadosamente planeados, foram aparecendo pouco a pouco pelo território, sempre com a calçada portuguesa como pano de fundo. Lilau, Santo Agostinho, Camões, São Francisco Xavier. Ou ainda Santo António, Feira do Carmo, Pagode da Barra. Todos exemplos de um novo tratamento dado ao conceito de praça que transformaram a calçada portuguesa numa marca da personalidade de Macau, que até nas carteiras andam sem que as pessoas se apercebam – a frente da nota de 100 patacas emitida pelo Banco Nacional Ultramarino mostra a ondulação da calçada portuguesa no coração da cidade.


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De Lisboa para o mundo

A calçada portuguesa surgiu em 1842 pela mão de reclusos e pela mente do Governador de armas do Castelo de São Jorge, em Lisboa. A ideia do engenheiro Eusébio Furtado de fazer um pavimento de pequenas pedras pretas e brancas, em ziguezague, na fortaleza e nos arredores do castelo para assinalar o caminho, fez tanto sucesso que as visitas ao Castelo aumentaram. Rapidamente a calçada propagou-se pela cidade. Em 1848, foi aprovado o projecto da autoria deste tenente-general, que visava revestir toda a Praça do Rossio com a calçada portuguesa. Ao fim de 323 dias, uma área de 8712 metros quadrados a que se chamou Mar Largo, com desenhos a homenagear os descobrimentos portugueses, ficou concluída. Daqui partiu-se para cobrir os passeios e mais ruas de Norte a Sul de Portugal. Além fronteiras, por onde os portugueses passaram, também se deixou esta marca no chão – Brasil, Cabo Verde, Angola, Moçambique ou Macau são provas disso.


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Macau e a sua ‘calçadinha’

Contam os registos históricos que nos séculos XVIII e XIX os navios que seguiam para Macau vinham quase vazios e precisavam de peso para navegarem em condições. A solução foi carregar os porões com pedras da calçada – sobretudo calcário e basalto – à partida de Portugal. As pedras eram descarregadas em Macau e os navios voltavam cheios de mercadoria. Sem lugar para amontoarem mais pedras, jesuítas e militares começaram a aplicá-las nas ruas que se iam abrindo pouco e pouco pelo território. “A ‘calçadinha’ era mais redonda, pequena e branca. Gravuras antigas comprovam a sua existência em Macau no século XIX e início do século XX. Com a invasão dos automóveis nos anos 1950, a ‘calçadinha’ foi desaparecendo”, aponta o arquitecto Francisco Vizeu Pinheiro. Até ao início dos anos 1980, era possível encontrar alguns vestígios da calçada portuguesa na zona do Leal Senado. Os passeios estreitos da Avenida Almeida Ribeiro e a fonte no centro da praça estavam pavimentados com as pedras branca e preta em formas geométricas, mas acabaram por desaparecer com obras que abriram mais espaço para a circulação de veículos.


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As obras mais emblemáticas da calçada

1992 – Terraços do Hotel Bela Vista
1993 – Largo do Senado e Largo de São Domingos
1993 – Jardim Comendador Ho Yin
1997 – Lago Nam Van
1996 – Parque Dr. Carlos D’Assumpção
1996 – Jardim Luís de Camões
1996 – Palácio da Praia Grande
1997 – Largo do Pagode da Barra
1999 – Jardim das Artes
1999 – Centro Ecuménico Kun Iam
2001 – Avenida Almeida Ribeiro
2001 – Praça do Lago Sai Van
2004 – Largo do Cais
2003 – Bairro de São Lázaro
2004 – Largo da Sé
2005 – Jardim de São Francisco
2005 – Jardim do Carmo e Feira do Carmo
2005 – Praça do Tap Seac
2006 – Praça de Jorge Álvares
2006 – Praça de Ferreira do Amaral
2010 – Largo do Lilau
2012 – Parque Central da Taipa
2013 – Travessa dos Anjos

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